quinta-feira, 26 de junho de 2008

1968 - O Ano que não terminou.


O ato final

"Eu confesso que é com verdadeira
violência aos meus princípios e idéias
que adoto uma atitude com esta."
(Presidente COSTA E SILVA)

Pela movimentação da véspera, podia-se esperar uma sexta-feira, 13, cheia de desassossego. Mas nem a superstição podia adivinhar que aquele dia iria durar mais de uma década. Costa e Silva, segundo seus exegetas, acreditava que o AI-5 acabaria em oito ou nove meses. Costa e Silva acabou antes.

Naquele dia 13, o marechal seria protagonista de um espetáculo em que 22 dos 23 figurantes pareciam dirigidos pela estética de José Celso Martinez Corrêa, que era capaz de dar a uma tragédia a forma de farsa, misturando chanchada, teatro de revista, circo e Chacrinha. Em apenas um ato, os atores que comandavam o país representaram todas as alegorias que o Tropicalismo havia posto na moda: o Cinismo, a Hipocrisia, o Servilismo, a Pusilanimidade, a Lisonja, a Subserviência. Mas isso foi mais tarde.

Às 9h30min da manhã, como estava programado, o presidente compareceu à Escola Naval para presidir as solenidades de formatura de cadetes e a entrega da Ordem do Mérito Naval. Acompanhado dos seus oficiais de gabinete, Costa e Silva foi recebido pelo ministro Augusto Rademaker, pelo comandante da Escola e por outros oficiais. Antes da cerimônia de declaração dos novos guardas-marinha, haveria a entrega das condecorações no pátio externo da Escola Naval.

Enquanto a comitiva presidencial passava por entre as 111 personalidades a serem agraciadas - militares, senadores, deputados, embaixadores - , o discreto secretário de Imprensa, a alguns metros de distância, ia observando a reação dos diversos militares presentes - do Exército, da Aeronáutica e da Marinha. Heráclio viu, por exemplo, quando um coronel do Exército encontrou-se com o general César Montagna e perguntou:
- Olá, chefe, como é que está o senhor?
- Como é que posso estar, rapaz? Estou com meu clube, quero o AI-5.
Como membro da comitiva, o major D'Aguiar pôde perceber também o mal-estar
do ambiente:
O lugar estava engalanado, muito bonito, mas nós fomos mal-recebidos; as fisionomias estavam fechadas, carrancudas, não havia aquela espontaneidade, a alegria de outras solenidades. O presidente foi recebido quase friamente. Estava todo mundo desconfiado de todo mundo.

Talvez por isso, o general Portella tenha tido que repetir tantas vezes naquela manhã o que já dissera a noite toda, sem trair o segredo, mas como uma senha: "Não sei qual é a decisão, mas é pra valer".

Da solenidade na Escola Naval, o presidente foi direto para a reunião com seu alto comando, às 11 horas, no Laranjeiras, onde pediu a cada um dos presentes que desse a sua opinião sobre a medida que ira adotar. Ao chegar atrasado, o ministro da Justiça provocou os dois únicos momentos de riso daquele encontro de tenebrosas intenções: o primeiro, quando o presidente resolveu gozar o atraso de Gama e Silva; o segundo, quando este fez a sua exposição, começando por ler um manifesto à nação, para em seguida propor um ato adicional tão radical que o próprio Lira Tavares interrompeu-o, arrancando risos gerais:

- Assim, não, Gama; assim você desarruma a casa toda.

Gama e Silva propunha o recesso do Supremo Tribunal Federal e o fechamento definitivo do Congresso, das Assembléias e das Câmaras de Vereadores. Não era aquilo o que o presidente queria. Gaminha não se abalou: tirou rapidamente da pasta o rascunho de
outro texto menos drástico.

A reunião não ofereceu surpresas. Costa e Silva levara anotações das medidas a serem tomadas e, no final, pediu ao ministro da Justiça e ao deputado Rondon Pacheco que transformassem o esboço no que viria a ser o Ato Institucional nº 5. Mas antes, por sugestão de Rondon, mandou chamar os ministros do Planejamento e da Fazenda para saber se a medida provocaria repercussões negativas na política econômico-financeira do governo. Jayme Portella, o emissário da convocação, relata: "Os ministros Hélio Beltrão e Delfim Neto declararam que nada a afetava, podendo ser o ato editado tranqüilamente."

Logo depois da reunião preliminar, às 13 horas, o presidente autorizou que as decisões ali tomadas fossem comunicadas, em "caráter sigiloso", aos escalões subordinados.

Alguns ex-assessores do presidente Costa e Silva alimentam até hoje a ilusão de que, se o ato proposto tivesse encontrado uma razoável oposição, alguma fórmula menos radical teria sido encontrada.

"Estou convencido", diz D'Aguiar, "que se houvesse uma divisão grande - Pedro Aleixo, por exemplo, e mais oito ou nove de um lado - o presidente procuraria outra solução que não o AI-5."

Como é uma hipótese, vale a pena introduzir outra: se, antes mesmo da oficialização, os principais escalões das Forças Armadas iam tomar conhecimento da decisão, que exigiam impacientemente há pelo menos 24 horas, seria possível admitir outro desfecho para a reunião das 17 horas?

Por uma razão ou por outra, Costa e Silva resolveu realizá-la com toda a liturgia de uma reunião histórica, decisiva, embora na prática ela só tivesse valor simbólico, já que o Conselho de Segurança Nacional, sem poder deliberativo, iria apenas sancionar uma decisão já tomada.

O presidente apresentava naquela tarde a disposição de quem se preparara para não perder nada do espetáculo que ia dirigir; nem a excitação em que se encontrava ele queria diminuir. Quando, às 16 horas, o seu médico, Dr. Élcio Simões, tirou-lhe a pressão e, assustado, quis medicá-lo imediatamente - segundo D'Aguiar, ele atingira 20 por 13 -, Costa e Silva retrucou:

- Não, hoje preciso dela bem alta.
Com a pressão mantida, o presidente Costa e Silva abriu, uma hora depois, a 43a. sessão do Conselho de Segurança Nacional, no Salão de Despachos no segundo andar do Palácio das Laranjeiras.

Quando era conduzido de seu gabinete pelo general Portella, o presidente encontrou o seu vice, a quem fez o carinho de segurá-lo pelo braço e levá-lo a um canto para uma conversa a dois. Segundo vários testemunhos, inclusive familiares, um tinha pelo outro muito apreço e respeito. "Dificilmente" - escreveria mais tarde José Carlos Brandi Aleixo num livro sobre o pai - "se encontrará, na história republicana, um relacionamento tão correto e cordial entre um presidente e seu vice como no caso de Costa e Silva e Pedro Aleixo." Aleixo era tido como um conselheiro que pesava nas decisões do presidente, embora naquele dia isso não fosse ocorrer.

Observadores da cena, como Portella e D'Aguiar, calculam que os dois tenham conversado ali na porta do salão uma meia hora. Para quem estava ansioso em começar a reunião, olhando o relógio a cada instante e chamando a atenção do chefe do Gabinete Militar para o horário, o tempo gasto na conversa dava a medida da importância do interlocutor.

Aleixo, que não participara da reunião das 11 horas - vindo de Belo Horizonte, ele chegou depois, acompanhado do ministro Passarinho - expunha a sua desaprovação à medida a ser adotada. O vice procurava convencer o presidente de que o estado de sítio
era o instrumento constitucional indicado para resolver a crise. A conversa foi interrompida quando os membros do Conselho já estavam entrando no salão para ocupar seus lugares, em frente aos quais havia uma pasta com algumas folhas de papel datilografado.

Na cabeceira, dois gravadores iriam funcionar como incômodos ouvidos da História.
Em volta da mesa e do presidente, estavam sentados os ministros e chefes de Estado-Maior, isto é, as 24 autoridades mais poderosas do país.

Costa e Silva abriu a reunião anunciando que o momento era crítico e por isso teria que tomar "uma decisão optativa": ou a Revolução continuava ou se desagregava. Ele acreditava que todos ali, além do povo, eram testemunhas do seu empenho em promover a união da área política e da área militar.

Demonstrando ressentimento pelo que classificava de falta de apoio político, o presidente não se conformava com a recusa do Congresso. As "considerações" que o seu governo dispensara aos políticos já lhe tinham criado inclusive problemas na área militar e revolucionária.

O presidente declarava não ter apego ao cargo e desejava chegar rapidamente ao fim do governo para passá-lo a quem pudesse promover a "harmonia entre a área política e a área militar, porque sem ela o Brasil irá à desagregação".

Em seguida, comunicou que se retiraria por uns 15 minutos para que os conselheiros pudessem ler mais à vontade o documento que estava na pastas, o AI-5.

Vinte minutos depois, Costa e Silva voltava ao salão, conduzido pelo general Portella, e dava a palavra a Pedro Aleixo, "a maior autoridade deste conselho".

O tom sereno do discurso do vice-presidente, a segurança da argumentação e a coragem de enfrentar uma platéia contrária, iriam impressionar até quem dele discordava, como o então major D'Aguiar, que ainda se comove com a lembrança: "Ele parecia tocado
pelo Divino Espírito Santo: fez uma corajosa, emocionante, brilhantíssima exposição".

O orador começou sustentando que o caso Márcio Alves deveria ser encaminhado mais na área política do que propriamente na área jurídica, porque não seria legítimo esperar da Câmara um processo contra um dos seus membros por palavras proferidas durante os discursos, em debates ou em votos e pareceres. Ele não considerava "aconselhável", do ponto de vista jurídico, a representação ao Supremo Tribunal Federal. Como o ato praticado implicaria o máximo, segundo Aleixo, crime de injúria, difamação e calúnia, as possíveis sanções ao deputado não poderiam ter o alcance da perda de mandato. O vice-presidente reconhecia o impacto do discurso das Forças Armadas e admitia ser aquele "um dos momentos mais graves e mais difíceis para a vida nacional".


Nesta oportunidade, pois, o que me parece aconselhável, seria, antes do exame de um Ato Institucional, a adoção de uma medida de ordem constitucional que viesse a permitir o melhor exame do caso em todas as suas conseqüências. A medida seria a suspensão da Constituição por intermédio do recurso do estado de sítio. Acrescento, senhor presidente, que da leitura que fiz do Ato Institucional cheguei à sincera conclusão de que, o que menos se faz nele, é resguardar a Constituição (...). Da Constituição, que é, antes de tudo, um instrumento de garantia dos direitos da pessoa humana e da garantia dos direitos políticos, não sobra, nos artigos posteriores, absolutamente nada que possa ser realmente parecido com uma caracterização do regime democrático. (...) Pelo Ato Institucional, o que me parece, adotado este caminho, é que estaremos com uma aparente ressalva da existência de vestígios dos poderes constitucionais decorrentes da Constituição de 24-1-67, e instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura.


Enfim, a palavra que dava nome real aos verdadeiros objetivos daquela solene encenação: ditadura. Aleixo admitia que pudesse haver necessidade de adotá-la, mas nesse caso, do ponto de vista jurídico, não havia dúvida: "O Ato Institucional elimina a própria Constituição." Ele não entendia nenhum ato institucional que não significasse "uma nova revolução", que não era, para ele, "a de 31 de março de 1964".

Um dos estudiosos do período, o jornalista Elio Gaspari - quem talvez mais tenha-se debruçado sobre os documentos dessa época - acha que Pedro Aleixo cometeu "o monumental equívoco de fixar-se numa argumentação jurídica, aceitando a possibilidade da ditadura, desde que ela não se pretendesse constitucional". Gaspari baseia-se, principalmente, no trecho em que o vice-presidente afirma: "Caso se torne necessário fazer essa Revolução, é uma matéria que pode ser debatida e acredito até que se possa demonstrar que essa necessidade existe." Segundo o jornalista, que está escrevendo um livro sobre os governos militares, a linha de argumentação de Aleixo desabou "na medida em que ele estava numa mesa de senhores interessados em proclamar uma ditadura, e não em discutir a legalidade do ato".

Mesmo assim, há indícios evidentes de que o discurso de Pedro Aleixo desagradou à grande maioria dos presentes, não só pela impaciência com que alguns o ouviram - a ponto de obrigar o presidente, a certa altura, a pedir silêncio - como pelos votos que se seguiram, todos os 22 a favor da edição do AI-5.

Quanto à reação do presidente, há um mistério. Observadores da reunião, como Heráclio Sales e Hernani D'Aguiar, um, assessor de Imprensa, e outro, de Relações Públicas, o primeiro contra o AI-5 e o segundo a favor, mas tendo em comum a mesma vontade de isenção, afirmam que Costa e Silva ficou tão impressionado com a fala de Aleixo que pediu ao sargento que cuidava dos gravadores que voltasse atrás a fita. O pretexto era dar oportunidade aos que, sentados do outro lado da mesa, não perdessem nada do que fora dito. Na verdade, conforme aquelas testemunhas, Costa e Silva teria usado um hábil estratagema para, quem sabe, abalar algumas das convicções presentes e até reverter opiniões.

"Ele tinha esperança de que o Conselho de Segurança Nacional votasse contra", garante Heráclio, que reconstitui o episódio:

Ficou aquele silêncio constrangedor e a voz de Pedro Aleixo massacrando novamente aquele colegiado todo favorável ao AI-5. Os argumentos jurídicos, políticos, éticos, morais e de conveniência apresentados com aquela lucidez, aquela articulação verbal, um negócio extraordinário.

O depoimento do assessor de Relações Públicas é semelhante:
Ouvida a mesa, determinou o presidente que se repetisse a gravação de toda a exposição inicial de Pedro Aleixo. Talvez movido pelo seu subconsciente, recomendou que todos meditassem sobre as palavras do "ilustre brasileiro Pedro Aleixo". No mais profundo e respeitoso silêncio, a gravação foi escutada por inteiro. Depois disso, o presidente perguntou a cada um dos presentes se mantinham o voto anterior, ou se modificavam em face da argumentação repetida.

D'Aguiar não entende por que o seu amigo Jayme Portella não registrou a cena - logo ele que, como um arguto repórter moderno, nunca desprezou detalhes de hora, clima, gestos, inclusive pequenos flagrantes do presidente fazendo palavras cruzadas em momentos críticos - enfim tudo aquilo que faz do seu livro, ainda que mal-escrito, um imprescindível documento para a reconstituição da época.

O único registro oficial da 43ª reunião do Conselho de Segurança Nacional, porém, não se refere ao incidente. Nem a gravação feita por dois gravadores, nem a conseqüente ata da histórica sessão, arquivadas sigilosamente na Secretaria-Geral do CSN, fornecem sequer vestígios da cena. Sensível, a fita era, porque em uma hora de gravação captou inclusive ruídos de sirene vindos do exterior.

Também a cópia do discurso do vice-presidente, que o general Golbery do Couto e Silva ofereceu à família Aleixo, não contém qualquer registro do gesto de Costa e Silva.

Toda essa controvérsia, no entanto - se a cena de fato ocorreu, se o trecho foi apagado -, tudo isso poderia ser facilmente esclarecido, assim como o verdadeiro desempenho dos personagens. Talvez por efeito do tempo, o que eles disseram na histórica sessão do CSN tem sido oferecido à opinião pública em versões que, ou foram maquiladas pela imaginação, ou sofreram reparações cosméticas operadas pela vergonha retrospectiva de cada um. Neste ano de 88, quando a edição do AI-5 completa duas décadas e a Constituinte extinguiu o CSN, criando o Conselho de Defesa Nacional, alguns dos signatários - como Passarinho, Beltrão, Delfim, por exemplo - prestariam um grande serviço a suas biografias e à História tentando liberar o acesso à fita e à ata, se é que não têm nada a temer.

De mais a mais, a não ser por um suspeito sigilo, não existe razão para manter secreto o registro de uma reunião que foi ostensivamente gravada para a posteridade e da qual participaram duas dúzias de personalidades, além da assistência de uma dezena de observadores: assessores, ajudantes-de-ordens e oficiais de gabinete.

A rigor, o único que deveria temer pela divulgação da fita seria José Celso Martinez Corrêa, porque ela permite descobrir que na verdade a mais autêntica encenação tropicalista do ano não saiu de sua cabeça.

Mas de qualquer maneira, com ou sem reprise, o memorável discurso de Pedro Aleixo não mudou a opinião de qualquer dos outros 22 conselheiros.

Para votar a proposta presidencial, estavam ali dez oficiais-generais (Augusto Haman Rademaker Grunewald, ministro da Marinha; Aurélio de Lira Tavares, ministro do Exército; Márcio de Souza Mello, ministro da Aeronáutica; Afonso Albuquerque Lima, ministro do Interior; Emílio Garrastazu Médici, chefe do SNI; almirante Adalberto de Barros Nunes, chefe do Estado-Maior da Armada; general Adalberto Pereira dos Santos, chefe do Estado-Maior do Exército; general Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas; tenente-brigadeiro Carlos Alberto Huet Sampaio, chefe do Estado-Maior da Aeronáutica; e general Jayme Portella, chefe da Casa Militar), três oficiais da Reserva (Mário David Andreazza, ministro dos Transportes: Jarbas G. Passarinho, ministro do Trabalho e Previdência Social; e José Costa Cavalcanti, ministro das Minas e Energia) e dez civis (Pedro Aleixo, vice-presidente da República; José de Magalhães Pinto, ministro das Relações Exteriores: Antônio Delfim Neto, ministro da Fazenda; Ivo Arzua Pereira, ministro da Agricultura; Leonel Miranda, ministro da Saúde; Tarso Dutra, ministro da Educação; Hélio Beltrão, ministro do Planejamento; Carlos F. de Simas, ministro das Comunicações; Rondon Pacheco, chefe da Casa Civil; e Luís Antônio Gama e Silva, ministro da Justiça).

Entre eles, seis eram parlamentares: Aleixo, Passarinho, Magalhães, Tarso, Rondon e Costa Cavalcanti.

No papel de memorando em que fazia questão de anotar os votos, o presidente Costa e Silva pôde colocar sim em todos os nomes, com exceção de Pedro Aleixo, à frente do qual escreveu "estado de sítio", sublinhado várias vezes.

Os 22 eleitores do sim não apresentaram objeções nas suas justificativas de voto. Ressalte-se, ao contrário, o cuidado deles em não deixar dúvidas quanto à disposição de se colocarem intransigentemente a favor. Se Costa e Silva estava de fato esperando resistências, ele não chegou a encontrar nem hesitações. Uns, por inato desapego à dignidade, outros abrindo mão de suas histórias pessoais, e muitos, por não tê-las, renunciando à oportunidade de começar a construí-las, aqueles 22 atores preferiam desempenhar o papel que o medo e a covardia lhes impunha. Era, como se disse, uma peça tropicalista: não havia lugar para a ética.

Os tropicalistas achavam que o absurdo brasileiro só poderia ser devolvido artisticamente pelo choque de elementos dramáticos antagônicos - o moderno e o arcaico, o rural e o urbano, a tecnologia e o artesanato, Ipanema e Iracema, banda e Carmem Miranda - encenados sob a forma de paródia. O resultado, hipertrofiado, revelava a realidade como o realismo era incapaz de fazê-lo. O problema é que às vezes a realidade permanecia mais absurda do que sua paródia, deixando o surreal aquém do real. Naquele palco, por exemplo, José Celso teria pouco a acrescentar. Os personagens reais eram suas próprias caricaturas, e o choque entre o que se propunha e as razões pelas quais se dizia aceitar o proposto era um jogo de cinismo que nenhuma transposição dramática conseguiria superar. Além disso, uma retórica de elipses e eufemismos produzia subversões semânticas capazes de colocar a palavra democracia - que estava sendo expulsa daquela mesa e do país - em quase todos os discursos, enquanto a ditadura, que se instaurava, era tratada como uma ausente distante. Houve até quem usasse o artifício de condená-la no passado para melhor aderir à do presente. Outros, considerando-a inevitável, aproveitaram para seguir o cínico conselho de reação ao estupro: experimentaram um forçado prazer.

Melhor do que ler a sinopse, porém, é assistir à peça. Era, como nenhum dos atores desconhecia, uma farsa. Eles estavam reunidos para celebrar um ritual, uma espécie de missa negra. Podia-se fingir ali qualquer reação, menos ingenuidade. Todos sabiam que aquele ato significava o início de uma ditadura explícita e declarada cujos efeitos eram óbvios.

Como anunciava o texto que todos foram obrigados a ler, ia-se fechar o Congresso por tempo indeterminado, interrompiam-se as garantias constitucionais de vitaliciedade, inamobilidade e estabilidade, podia-se cassar, demitir, transferir, reformar funcionários civis e militares à vontade e suspendia-se o habeas corpus, o que - com o reforço da posterior Lei de Segurança Nacional - permitia manter qualquer preso acusado de delito político em regime de incomunicabilidade por dez dias - cinco a mais do que o Alvará de 1705, usado para extorquir as confissões dos Inconfidentes.

Para encenar esse rito de celebração, que inaugurava o reino do Arbítrio e da Tortura, o elenco se apresentava completo.

O primeiro a dizer a sua fala foi o ministro da Marinha, almirante Augusto Rademaker, como tal vestido. Parcimonioso nas palavras, ele fez parte do grupo que, por timidez ou esperteza, deu o seu recado de forma firme e direta. Ele discordava do vice-presidente e achava que havia uma situação de fato que não devia ser debatida "juridicamente, legalmente, ou constitucionalmente". Ele não tergiversava: "É oportuno fazer qualquer Ato Institucional como este." Mais sintéticos, só os votos do general Jayme Portella e de Mário Andreazza, as aparições mais curtas do espetáculo.

Mas houve os que quiseram roubar a cena e deram um show de representação. Não necessariamente pela ordem de entrada, merecem destaque especial Tarso Dutra, Lira Tavares, Ivo Arzua, Jarbas Passarinho, Albuquerque Lima e Hélio Beltrão.

Tarso Dutra foi o único voto ao qual Costa e Silva, nas suas anotações sobre os desempenhos, acrescentou ao sim uma observação: "com modificações".

Era um exagero do anotador. Na verdade, o ministro da Educação propunha, em lugar do AI-5, um Ato Adicional que não revogaria dispositivos constitucionais e que poderia ser interpretado como possível abertura para uma revogação posterior. Em compensação, para não dar margem a equívocos, ele se dava o direito de reivindicar a primazia de ter sugerido muito antes, durante uma outra reunião do CSN, medida semelhante. "Parece, assim, senhor presidente, que com alguns meses de anterioridade no tempo, eu estava, por assim dizer, quase que motivando o ato que se deve praticar neste instante."

Nessa disputa inglória, Tarso tinha como concorrentes o ministro Ivo Arzua e o general Médici, que reivindicavam a mesma prioridade. Médici foi enfático: "Acredito, senhor presidente, que com a sua formação democrática, V.Exa. foi tolerante demais, porque naquela oportunidade eu já solicitava a V.Exa. que fossem tomadas medidas excepcionais para combater a contra-revolução que estava na rua."

Quanto a Rondon, este sim, senão apresentava objeções, oferecia ao menos uma sugestão restritiva: depois de demonstrar que o estado de sítio proposto por Aleixo era inviável por causa de detalhes constitucionais, o chefe da Casa Civil sugeria que se estabelecesse o prazo de um ano para o recesso do Congresso e para o próprio Ato Institucional. Não que fosse contra a medida, mas porque considerava aquele prazo suficiente "para que o governo possa debelar a subversão e o processo da guerra revolucionária ora em marcha".

O apoio maciço à proposta da Costa e Silva foi em geral oferecido com argumentos que faziam questão de reforçar a necessidade da medida. Falou-se em "contestação do processo revolucionário" e na ameaça da "contra-revolução". Pelo menos dois votantes, além de Médici, alegaram esse risco para darem o seu apoio: Orlando Geisel e Barros Nunes.

O adjetivo "magnânimo", para caracterizar a ação do presidente Costa e Silva e das Forças Armadas, foi usado por dois conselheiros, Albuquerque Lima e Ivo Arzua. O ministro da Agricultura, numa delirante intervenção - que constrange até hoje os que o ouviram ao vivo ou em gravação -, chegou a dizer que revidaria com "desforço pessoal", se a vítima da ofensa fosse ele e não "as magnânimas Forças Armadas". Depois de registrar que cinco meses antes já antecipara o seu voto - na reunião do CSN de 16 de julho - Arzua propunha a instalação de uma Constituinte e a formação de uma "Nova República". Só faltou sugerir o Plano Cruzado.

Uma preocupação atraiu muitos adeptos: a que se relacionava com a "institucionalização", considerada prematura, do processo revolucionário - ou "autolimitação", para citar uma palavra usada por Albuquerque Lima e por Passarinho. O "açodamento" (outra palavra de Passarinho) dessa institucionalização teria sido responsável pelo recrudescimento da "contestação" e da "contra-revolução" - de tal maneira que o próprio AI-5 talvez não fosse suficiente para barrá-las, ou não tão drástico", como advertiu o brigadeiro Huet. Por isso, defenderam a sugestão de dar ao presidente "a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais" quatro ministros: Orlando Geisel, Albuquerque Lima, Delfim Neto e Gama e Silva.

A palavra ditadura só foi usada, depois de Aleixo, por três conselheiros: Magalhães Pinto, Passarinho e Hélio Beltrão. O primeiro admitia, citando o vice-presidente, que realmente aquele ato estava instituindo uma ditadura, mas "se ela é necessária, devemos tomar as responsabilidades de fazê-la".

Passarinho não tinha dúvida de que era "uma ordem ditatorial" o que se estava instalando ali. "Repugna enveredar pelo caminho da ditadura", confessava, para ressalvar: "É esta que está diante de nós." Se era inevitável, propunha então o ministro do Trabalho: "às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência".

Numa longa justificativa em que lembrava a sua condição de filho de um homem público que "consumiu a vida combatendo a ditadura", e citava a sua própria carreira pública com "vários atos claros de repúdio à ditadura, o ministro Hélio Beltrão parecia à vontade para, naquele momento, aderir ao regime que sua história familiar abominara. Ele achava que diante da situação - riscos de desordem, ameaças ao processo de desenvolvimento - "nenhuma consideração de ordem puramente formal nos deve afastar da responsabilidade de assegurar a ordem e a tranqüilidade para o trabalho e o desenvolvimento".

É bem verdade que o seu foi o único voto sim a pedir cuidado na aplicação da medida: "É na execução dela que se revelará o conteúdo antidemocrático, ditatorial ou arbritrário." Ele percebia a dimensão dos assustadores poderes que o ato encerrava: "Nunca deverão ser usados para retirar a liberdade de um inocente, daquele que nada tem a ver com a subversão e a contra-revolução." As precauções de Beltrão não levavam em consideração que o AI-5 estava sendo editado não para proteger inocentes, mas para transformá-los em suspeitos ou culpados.

A 43ª reunião do CSN foi encerrada com um discurso de Costa e Silva ressaltando a quase unanimidade do Conselho. "Evidentemente, houve observações", admitiu, sem lhes dar importância, "mas apenas de caráter formal e de redação."

Sobre Pedro Aleixo, ele disse: "Peço a Deus que não me venha convencer amanhã de que ele é que estava certo, porque ele admitiu mesmo a hipótese do Ato final, porque entendo, como entende o Conselho na sua sabedoria de maioria, de quase unanimidade, que nesta escalada o degrau proposto se torna evidentemente desnecessário."

O presidente terminou a sua exposição com um desabafo: "Eu confesso que é com verdadeira violência aos meus princípios e idéias que adoto uma atitude com esta. Adoto-as convencido de que elas são do interesse do país, do interesse nacional, que demos um basta à contra-revolução."

Pela primeira vez, em quase duas horas de reunião, a palavra "violência" era usada para definir o sentimento de alguém em relação ao ato aprovado. É possível, como acreditam alguns dos ex-auxiliares presidenciais, que Costa e Silva estivesse realizando um último esforço no sentido de atrair seus companheiros de governo para dividirem com ele aquele sentimento de "violência" - quando nada para uma espécie de expiação em grupo. Mas os 22 membros dos CSN que votaram sim permaneceram irredutíveis e mais veementes na defesa do AI-5 do que o próprio autor. Eram, ao contrário de Djalma Marinho, vassalos mais realistas do que o rei, a quem pareciam dispostos a dar tudo, inclusive a honra.

Antes mesmo de terminada a reunião, a notícia do AI-5 chegou à Câmara dos Deputados, quando discursava monsenhor Arruda Câmara manifestando a esperança de que o governo respeitasse a decisão parlamentar da véspera.

O plenário festivo do dia anterior caiu logo em profundo silêncio e se transferiu para os corredores e para o gabinete da Presidência, congestionado por uma meia dezena de parlamentares e jornalistas. O líder da Oposição queria a convocação imediata de uma sessão extraordinária, pois achava que era um dever da Presidência da Câmara tentar qualquer gesto de resistência, ainda que simbólico. Em função desse pedido, Martins Rodrigues e José Bonifácio de Andrada, de apelido Zezinho, mantiveram um áspero diálogo:

- Não existe mais Câmara - disse aquele que não mais a presidia.
- Não existe é o presidente - revidou o líder.

O deputado Celso Passos, de Minas Gerais como Bonifácio Andrada, entrou
nesse momento na discussão:
- Seja menos Zezinho e mais Andrada - conclamou.

A resposta de Bonifácio foi uma banana. Decididamente, ele resolvera ser mais Zezinho.

Às 22h30min, o ministro da Justiça e o locutor Alberto Cury liam, em cadeia de TV, os seis considerandos e os 12 artigos que compunham o Ato Institucional nº 5, e mais o Ato Complementar nº 38, que decretava o recesso do Congresso. Foi uma leitura monótona e ameaçadora como uma sentença de morte: "O presidente da República poderá decretar..." repetiu incansavelmente o locutor.

A exemplo daquelas orações, todas regidas por um único sujeito, 90 milhões de brasileiros, a partir daquele momento, iriam ser comandados também por uma única vontade.

Dez anos depois, às vésperas da revogação do AI-5, a maioria dos seus signatários se declarava insatisfeita com o monstro que havia criado. Albuquerque Lima lamentava “as características punitivas” da medida que ele apoiara para permitir - uma década depois ele descobria - "a execução da reforma agrária". Magalhães Pinto acreditou na palavra do presidente, que lhe garantira que o ato ia durar apenas "de seis a oito meses". Ivo Arzua achava que o AI-5 ia possibilitar a "formação do verdadeiro Estado brasileiro". Até o ex-ministro da Aeronáutica, marechal-do-ar Márcio de Souza Mello, dizia que devia "ter sido extinto há muito".

Nos 18 dias de agonia do ato - entre o 13 e o 31 de dezembro de 78 - esse cordão cresceu tanto que o ex-ministro Jarbas Passarinho chegou a protestar: "Sinto-me entre revoltado e indignado quando vejo signatários do AI-5 posando hoje de madalenas arrependidas."

Ele tinha razão, mesmo porque era tarde para arrependimentos. Em dez anos de vigência, o AI-5 já tivera tempo de punir 1.607 cidadãos, dos quais 321 cassados: seis senadores, 110 deputados federais e 161 estaduais, 22 prefeitos, 22 vereadores - mais de seis milhões de votos anulados. Além da cassação, todos os senadores e 100 deputados federais tiveram seus direitos políticos suspensos por 10 anos. Entre as punições a funcionários públicos, estavam o afastamento de três ministros do Supremo Tribunal Federal - Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Vítor Nunes Leal - e de professores universitários como Caio Prado Júnior - condenado a quatro anos e meio de prisão por uma entrevista a um jornal estudantil - Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Mário Schemberg, Vilanova Artigas, Hélio Lourenço de Oliveira e uma dezena de pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, entre outros, muitos outros.

Paralelamente a essa caçada aos criadores, o AI-5 desenvolveu um implacável expurgo nas obras criadas. Em dez anos, cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovela foram censurados. Só Plínio Marcos teve 18 peças vetadas. O índex reunia um elenco variado, que ia de Chico Buarque, um dos artistas mais censurados e perseguidos da época, a Dercy Gonçalves e Clóvis Bornay.

A violência, que o marechal Costa e Silva confessou ter sentido ao editar o AI-5, ia deixar de ser uma figura de retórica. A partir do dia 13 de dezembro de 1968, ela se abateria de fato sobre a alma e a carne de toda uma geração.

Nenhum comentário: